Há algo de podre no reino da Dinamarca. E isso é bom para nós
Há algo de podre no reino da Dinamarca. 
E isso é bom para nós

O filme se a na Inglaterra de 1987, convulsionada pelo desemprego – sobretudo na indústria – e pelo arrocho nos gastos públicos, consequências da política econômica adotada pela primeira-ministra Margaret Thatcher (1925-2013), reeleita naquele ano para um terceiro mandato. Nesse cenário, as letras de Springsteen, um notório porta-voz da classe operária, tocam em cheio Javed (Viveik Kalra), um adolescente de família paquistanesa na cidadezinha de Luton, "terras ruins" como aquelas cantadas pelo ídolo recém-descoberto. A música torna-se uma aliada, sobretudo quando o pai, Malik (Kulvinder Ghir), é demitido da fábrica de automóveis, em decorrência do incentivo às importações pelo governo do Reino Unido. Aí, a mãe, Noor (Meera Ganatra), precisa trabalhar dobrado como costureira para garantir o sustento da casa, onde também moram a irmã de Javed e uma prima.

Aos problemas financeiros, somam-se muitos outros. Em casa, Javed sofre com o apego do pai às tradições e sua subserviência herdada do colonialismo ("Nós temos de manter a cabeça baixa", Malik diz, enquanto o filho sente-se nascido para correr) – o choque geracional é um dos motores mais potentes do filme. Na rua, sofre com o preconceito e o racismo para com os imigrantes asiáticos – alvos de pichações, eatas e até agressões xenofóbicas. Em seu íntimo, sofre com as inquietações típicas da adolescência, como a urgência peio primeiro beijo em uma garota – a ativista Eliza (Nell Williams) atiçará seu coração faminto – e as aspirações profissionais: Javed sonha em ser um escritor ou um jornalista, no que é estimulado pela professora (Hayley Atwell).

Tal qual a mãe do protagonista, Gurinder Chadha é habilidosa ao costurar esses elementos e não pesa a mão. Seu filme tem delicadeza, tem humor, tem fantasia – os números musicais remetem a videoclipes dos anos 1980, com figurantes dançando e coadjuvantes se juntando ao coro. Embora o amigo sikh que apresenta Springsteen a Javed seja pouco desenvolvido (não sabemos direito, por exemplo, como ele descobriu o artista), os personagens são bem trabalhados e merecem seus solos – destaque para a cena em que durão Malik, pintando os cabelos para o casamento da sobrinha, desaba em toda a sua vulnerabilidade. Embora aqui e ali A Música da Minha Vida escorregue para um certo didatismo moral, é bonito ver letras escritas por um americano de subúrbio ressoando para um garoto inglês de origem paquistanesa, e também é bonito, apesar de preocupante, que os versos e os discursos de Springsteen permaneçam tão atuais e vigorosos. A transformação do mundo em um lugar melhor e mais justo não vem de quem tem o poder para isso – quando ele canta, em Dancing in the Dark, que "você não pode começar um incêndio sem uma faísca", dá para pensar em Greta Thunberg, a adolescente sueca que virou símbolo na luta pela preservação do ambiente, e nas tantas lideranças comunitárias que se empenham para trazer qualidade de vida às favelas brasileiras. Segue muito necessário o apelo com o qual Bruce encerrava seus shows: "Ninguém vence a não ser que todo mundo vença".


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