É uma alegria enorme para nós. O Festival de Berlim é um evento incrível, que sempre acreditou na gente desde o início da nossa trajetória. São 10 anos desde que Beira-Mar estreou lá, e voltar pela terceira vez é muito especial. Temos muitas memórias lindas e um carinho enorme pelo festival. Nossos filmes sempre nascem felizes no inverno berlinense.

Fazendo um exercício de distanciamento, vocês podem falar sobre por que seus filmes são escolhidos para um dos principais festivais de cinema do mundo?
Essa é uma reflexão difícil. Algo que se destaca para nós é que a Berlinale já exibiu nossos filmes em diferentes seções. Beira-Mar ou na mostra Fórum, dedicada a obras mais experimentais ou que desafiem a linguagem cinematográfica, e também teve uma exibição especial na Generation, voltada ao público jovem. Já Tinta Bruta e Ato Noturno foram selecionados para a Panorama. Ou seja, nossos filmes foram acolhidos por grupos diversos de curadores, que se interessaram em exibir nossos trabalhos dentro do festival. De nossa parte, fazemos sempre os filmes mais honestos que conseguimos — aqueles que gostaríamos de assistir, e que carregam nossa visão de cinema e de mundo. Nosso trabalho reflete nossas angústias e as do nosso lugar: o Rio Grande do Sul, o Brasil e a América Latina. Felizmente, nosso olhar tem tocado outras pessoas também.

Vitrine Filmes / Divulgação
Mateus Almada e Maurício Barcellos em "Beira-Mar" (2015), filme de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon.

A julgar pela sinopse, Ato Noturno (2025) completa uma espécie de trilogia queer. Primeiro, em Beira-Mar (2015), os personagens eram dois garotos recém-saídos da adolescência. Em Tinta Bruta (2018), dois jovens que fazem performances eróticas de dentro de seus quartos para espectadores anônimos. Agora, temos um ator e um político — ambos ocultando do olhar dos outros parte importante de sua identidade — que vivem um caso em sigilo. Em comum nesses três filmes, parece haver um véu que cobre a sexualidade, o amor gay. Desejos reprimidos, romances às escondidas, a opressão das convenções de gênero. Mas também há, pelo menos nos dois primeiros filmes, um tanto de autodescoberta, autoaceitação. Faz sentido o que eu disse sobre "trilogia"? Vocês podem falar sobre os temas de seus filmes e sobre que tipo de diálogo propõem ao público, que tipo de espelho oferecem ao espectador?
De certa forma, nossos filmes sempre estarão conectados, porque têm muito de nós neles. Mesmo não sendo autobiográficos, nascem dos nossos sentimentos e inquietações. Mas, ao mesmo tempo, enxergamos os três como obras bastante distintas. Não vemos nenhum deles como "romances" nem abordando "amor gay". Mas para muitas pessoas LGBTs, a vida tem um constante conflito com a sociedade ao redor e uma frequente negociação consigo mesmo. Talvez seja aí que os filmes conversem entre si. Beira-Mar era um mergulho introspectivo sobre identidade e futuro. Tinta Bruta falava sobre se abrir ao mundo depois de enfrentar uma violência. Já Ato Noturno discute o choque entre desejo e ambição na sociedade de hoje. Cada protagonista tem sua própria jornada, mas algo conecta todos: uma rebeldia, uma insistência em viver plenamente o desejo e de ser quem se é, apesar das imposições externas.

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Shico Menegat em "Tinta Bruta" (2018), filme de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon.

Um outro traço em comum entre Beira-Mar e Tinta Bruta, e que não sei se aparece em Ato Noturno, é a introspecção dos personagens. São tipos melancólicos e silenciosos, que calam o que realmente querem dizer, o que sentem. Na verdade, essa me parece uma característica marcante no cinema gaúcho dos anos 2010 e 2020. Vocês concordam? Ao que atribuem essa coleção de protagonistas introspectivos? Tem a ver com a estética do frio proposta pelo Vitor Ramil? Existe algo na nossa água ou, principalmente, na nossa luz?
Nossos personagens são reflexos de seus conflitos e jornadas, e do ambiente em que estão inseridos. Por exemplo, no caso do Beira-Mar, nós tivemos a intenção de representar uma juventude como lembramos, cheias de esperas, silêncios e incertezas, em um litoral invernal. Em Tinta Bruta, Pedro foi se apagando, se isolando da cidade opressora, e somente encontrando conexões na internet. Mas em Ato Noturno os personagens são mais ativos e energéticos. Existe neles uma pulsão que move a trama e a atmosfera do filme de maneira bem intensa.

A sinopse de Ato Noturno também informa que os dois personagens descobrem ter fetiche por sexo em lugares públicos. Coincidentemente, o filme vem à luz na mesma época em que houve o compartilhamento nas redes sociais de dois casos de sexo ao ar livre no Rio de Janeiro que reuniram dezenas de pessoas, um na Pedra do Arpoador e o outro em Búzios. Em Porto Alegre, há relatos de que praças públicas têm sido cenário do chamado cruising. Vocês podem falar deste assunto? É como se fosse uma resposta da comunidade gay a décadas, séculos de cerceamento?
Esse é um ponto importante do Ato Noturno, mas é difícil de adentrar sem ter assistido ao filme. Especialmente porque, no longa, as ações dos personagens simbolizam seus conflitos interiores mais do que são representações diretas da realidade.

O cinema de vocês gosta bastante da rua, dos cenários externos. Que lugares de Porto Alegre poderemos identificar em Ato Noturno?
Criamos nossos personagens e histórias em relação ao meio que estão inseridos. Suas personalidades e suas jornadas são respostas ao ambiente. Gostamos de pensar nos espaços como se fossem personagens também, com personalidade e significado dentro da narrativa. Além disso, é importante para nós registrar os lugares em que crescemos e vivemos. Em Ato Noturno, filmamos principalmente no Centro Histórico. As ruas próximas ao Theatro São Pedro, a Mauá e a Redenção são cenários importantes da história. É talvez nosso filme que mais mostre Porto Alegre. Em uma cidade constantemente ameaçada pela especulação imobiliária, eternizar sua paisagem se torna ainda mais urgente.

Rafael Barion / Divulgação
Marcio Reolon e Filipe Matzembacher filmaram no Centro Histórico cenas do filme "Ato Noturno".

A propósito, a assessora de imprensa disse que hoje vocês moram no Exterior, certo? Onde e por quê? Vão continuar fazendo filmes ambientados no RS?
Seguimos morando em Porto Alegre, é nossa casa. Mas temos ado temporadas em Berlim, onde atualmente damos aula em uma universidade. Não conseguimos nos imaginar longe da cidade, e criar histórias fora dela ainda é difícil para nós. Nossos personagens dialogam com o Rio Grande do Sul e suas transformações.

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