É preciso diálogo para diferenciar má-fé de ignorância. É possível transformar o campeão de preconceito em modelo de diversidade. Não há nada mais transformador do que uma pessoa se dar conta de que era preconceituosa e ar a ser diferente. Isso é melhor do que demitir, excluir, descartar.
Nos últimos anos, grandes empresas miram cada vez mais o público LGBT, sobretudo em campanhas publicitárias. Há pouco mais de 20 anos, isso era inviável. Esse tipo de ação traz apenas dinheiro ou também capital social?
Entendo que, a longo prazo, uma transformação ocorre inevitavelmente. amos por um momento de retrocesso no país e no mundo, com o avanço do conservadorismo, mas ações pela diversidade consolidam uma empresa como defensora de causas morais e éticas. Para as novas gerações, isso é relevante. A Skol, por exemplo, até há pouco era uma marca que só trazia a mulher de biquíni segurando cerveja, e agora se reposiciona em prol da diversidade, mostrando que ainda consegue manter um resultado muito positivo, porque atinge essa população de millennials (a chamada Geração Y, que chegou ao mercado no novo século) que também consome cerveja e agora se vê na propaganda. Essa representatividade costuma trazer retorno a curto prazo, sim. Não é só uma conquista dessas novas gerações: é uma resposta das empresas, que também saem ganhando.
Qual é a importância de se ver na TV, num filme, num programa como o BBB?
Os grupos minorizados percebem que podem participar da sociedade da mesma forma que qualquer outra pessoa. Todos podem estar onde quiserem. Ao ver que há um LGBT na política, por exemplo, entendo que posso ser um político também.
São poucas as lideranças trans nas organizações – Danielle Torres é um raro caso, na KPMG. Um relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) publicado em janeiro mostra que o número de assassinatos de pessoas trans no Brasil é o maior nos últimos 10 anos. E a organização Transgender Europe diz que somos o país que mais mata trans no mundo. A inclusão não estaria ocorrendo apenas para o público gay com poder de compra?
O mercado não pode achar que basta dar visibilidade a apenas uma parcela da população LGBT. Quando você foca só em homens gays brancos de classe média – o chamado pink money –, você também invisibiliza a população que não está no mercado de trabalho por causa do preconceito. Aí, entra o papel desses homens gays de serem aliados à população trans e a outras causas. É nossa responsabilidade trazer visibilidade a quem é marginalizado. As mulheres trans sofrem duas vezes, por serem mulheres e por serem trans, por transgredirem o masculino e o feminino. Não há como mudar isso de uma hora para outra, mas há um processo nesse sentido.
Como você avalia o caso da Coca-Cola, cujo núcleo de diversidade sexual mostrou uma foto na qual não havia mulheres, nem negros, nem gordos?
Sempre se fala que um grupo de diversidade tem de ter representatividade, e espera-se que ele seja feito por voluntários. Se uma empresa majoritariamente feita por homens quer criar um grupo de diversidade LGBT, não podemos dizer para uma mulher participar apenas para obter uma cota socialmente aceita. Aí entra a questão: deixamos de criar um grupo de diversidade por não ter vários recortes sociais entre os voluntários ou o criamos mesmo assim enquanto se trabalha para chegar a mais diversidade na empresa? Simplesmente criticar pelo recorte social não é o caminho.
Em meio a esse aumento de visibilidade da população LGBT, há uma onda em sentido contrário. Como você enxerga esse embate de forças?
Sempre que há novos ciclos de realidade e de tecnologia, há também uma força contrária, de mesma proporção. Essa força é composta por quem não estava conectado, não se entendia como grupo, não entende a nova realidade de inclusão nem como isso é positivo para todos. A falta de educação é um problema. Em um país que não valoriza a educação de forma sistemática, como o Brasil, as pessoas não entendem a importância da diversidade e da inclusão.
Qual é a importância de dialogar mesmo com quem pratica o preconceito?
Essa é uma das questões mais difíceis. É importante entender de onde vem o ódio. Ao mesmo tempo, como criar um diálogo no momento em que o ódio se conecta pelas redes sociais, que formam bolhas dentro das quais as pessoas veem apenas o que acreditam? Temos no Brasil essa questão de não conversar, não ouvir o outro, porque o que nos interessa é provar o nosso ponto. O fato de não sairmos do nosso grupo social para entender o outro, e por sermos um país individualista, com essa ideia de distância do poder de que falei antes, pode explicar esses embates. O mais importante é que quem tem senso de mudança social deve entender que o país precisa de mais líderes que saiam de sua zona de conforto e assumam um potencial transformador. É preciso entender as diferenças para promover ações positivas – a partir da liderança.
Um estudo da ActionAid mostrou que os países perdem até us$ 9 trilhões devido à desigualdade de gênero. Preconceito ignifica perda de dinheiro, de oportunidades e de inovação.
A população LGBT conseguiu a união estável e o direito de estender benefícios previdenciários e de plano de saúde ao cônjuge. Mas isso só veio por via judicial. Do Legislativo e do Executivo surgem menos ações pró-população LGBT. As grandes mudanças só vão ocorrer por judicialização?
O Legislativo tem pouca representatividade. Elegemos sempre as mesmas pessoas, do mesmo padrão, para nos representar – por isso os eleitos não entendem a necessidade de se criar políticas públicas que acolham os mais diversos tipos de pessoas. A mesma relação ocorre em uma empresa: sem um recorte de diversidade, não há como trazer inovação para responder a problemas com novas soluções. As pessoas precisam entender o quanto é importante votar conscientemente.
Como você avalia o reconhecimento internacional que vem obtendo? Como se sente mostrando-se como um exemplo de sucesso?
É uma responsabilidade que tenho. Sempre estou na linha tênue entre me posicionar e não ser pretensioso, porque sei o quão importante é a presença de líderes como exemplo. Quando comecei a me expor socialmente como um LGBT e a trabalhar isso de forma positiva, mostrando que traz resultado inclusive financeiro para as empresas, muitas pessoas vieram falar comigo por representá-las, de forma a validar minha exposição. Uma pessoa me disse que saiu do armário para os pais depois que viu que era possível ter uma carreira sendo LGBT, mostrando para eles o reconhecimento a mim por parte dessa lista publicada pelo Financial Times. Se eu puder continuar a promover essa transformação e dar o exemplo até termos uma pessoa com menos privilégio que eu tomando o meu lugar, estarei cumprindo meu papel.