Integrante do grupo de trabalho autor da nota técnica do Conselho Federal de Psicologia
– Para algumas psicólogas, faz sentido que uma terapia dure quatro, seis, 10 anos. Eu sou intensa, quero que as coisas aconteçam rápido. Então, para mim, ficar em terapia 10 anos não servia. Eu queria ver o que precisava e na constelação eu consegui ver, consegui tratar. Uma coisa que poderia demorar para mim muito mais tempo, eu tratei em cinco, seis meses. Não é uma promessa de cura, mas é um jeito de olhar a vida diferente. É um jeito diferente de se reconectar com os anteados – afirma.
A constelação familiar é criticada por “quebrar” o sigilo do atendimento com sessões em grupo e online. A psicóloga diz que abordagem é parecida ao que ocorre, com sucesso, em grupos como os Alcoólicos Anônimos (AA) e Mulheres que Amam Demais Anônimas (Mada). Ela comenta o fato de a prática ser acusada de discriminar homossexuais e fazer vítimas reviverem episódios de violência.
– Não existe preconceito, porque a terapia não julga. A constelação não quer fazer a pessoa aceitar o mal que aconteceu com ela. Não é sobre o pai, sobre o estuprador, sobre aborto, é sobre ela, sobre dar um lugar para isso de um jeito mais grandioso, para olhar para isso de um jeito diferente, mais leve – acrescenta.
Não é necessário ser psicólogo para oferecer a terapia, porque a prática, até o momento, não é definida por nenhuma legislação. O projeto de lei 4.887/2020, de autoria de Erika Kokay (PT-DF), regulamenta o exercício da profissão de Constelador Familiar Sistêmico ou Terapeuta Sistêmico. Segundo site da Câmara dos Deputados, a proposta aguarda designação de relator na Comissão de Trabalho, onde chegou em março de 2021.
A constelação familiar tem sido utilizada há anos como ferramenta de resolução de conflitos na Justiça brasileira. A busca para evitar que conflitos familiares se tornem processos judiciais tradicionais é amparada na resolução 125/10 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2010.
A norma determina aos tribunais a criação dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs) e dos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemecs), que estruturaram unidades destinadas ao atendimento dos casos de conciliação. A resolução também regulamentou a atuação dos conciliadores e mediadores.
Outras duas leis de 2015 regulamentam o incentivo à mediação: a 13.140, mais conhecida como Lei de Mediação, estabelece diretrizes para o uso da mediação na Justiça e na resolução de questões entre órgãos da istração pública e particulares. A lei 13.105 diz que o Estado “promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”.
A constelação não serve como meio de prova, mas como meio de conscientização e de melhora no relacionamento. Em mais de 90% dos casos, as partes se conduzem a um acordo e se conciliam, e dispensa qualquer julgamento na ação.
SAMI STORCH
Juiz do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia
Nenhuma das normas cita a constelação familiar, tampouco a proíbe. “A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”, diz o texto da lei 13.105.
É o que faz Sami Storch, juiz do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, desde 2006, quando começou a usar a constelação familiar na rotina dos processos. A maior experiência dele é com casos da Vara da Família, mas relata ter utilizado a terapia em outras áreas, como civil e criminal. Em seu site, o juiz diz ser “pioneiro em nível mundial na utilização da abordagem sistêmico-fenomenológica das constelações familiares para promover conciliações e a resolução de conflitos na Justiça”.
– Já peguei processos com 15 anos (de duração) sem nenhuma perspectiva de solução, que, depois da constelação, as pessoas conseguiram entrar em um acordo e fazer o processo andar. A constelação não serve como meio de prova, mas como meio de conscientização e de melhora no relacionamento. Em mais de 90% dos casos, as partes se conduzem a um acordo e se conciliam, e dispensa qualquer julgamento na ação – afirma.
Storch tem formação em cursos relacionados à terapia e é o responsável pelas sessões, na maioria dos casos: os encontros são em grupo e presenciais, que recebem pessoas envolvidas em processos, advogados, psicólogos, estudantes e interessados no tema. A técnica é oferecida como um meio de evitar o prolongamento da ação. A participação é facultativa e não integra o processo.
— Se ela quiser, é dada a oportunidade de participar como representante de uma constelação ou apresentar um tema pessoal. Evito que se falem detalhes: não são citados nomes, não é mencionado o número do processo. A pessoa chega e só é perguntado se é um divórcio ou uma ação de guarda, e fazemos a constelação com base nessas poucas informações — explica o juiz.
E, segundo Storch, a constelação é conduzida, com sucesso, em situações nas quais há episódios de violência entre os participantes da sessão, algo que é desaprovado por críticos:
— Até hoje não recebi nenhuma reclamação, mas vejo que existem formas adequadas de se utilizar a abordagem em casos que em existem traumas. É importante as vítimas estarem acompanhadas de advogado. A efetividade é imensa, porque a constelação permite que elas enxerguem onde é que está a sua própria força, para elas conseguirem se libertar de uma situação de reincidência na prática da violência.
No Rio Grande do Sul, o projeto Justiça Sistêmica: Resolução de Conflitos à Luz das Constelações Familiares, busca “oferecer à população possibilidades de conscientização sobre as reais causas dos conflitos judicializados ou com interesse em judicializar”, nas palavras de Cristiane Pan Nys, coautora da iniciativa e consteladora. Segundo ela, o trabalho ocorre atualmente em diversas comarcas do Estado, como Viamão, Flores da Cunha e Porto Alegre. Cristiane diz que a mediação e a constelação possuem métodos diferentes, mas podem se somar:
— Através do método das constelações familiares, as pessoas podem encontrar as razões sistêmicas que as levaram a viver as dificuldades relacionais e de vida nas quais se encontram. Ao tomar consciência das reais causas por trás dos conflitos, que podem envolver diferentes sistemas familiares, podem ocorrer mudanças na percepção e reconciliações e tomadas de novas decisões podem ocorrer.
Segundo o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), o projeto não é institucionalizado, mas há uma proposta em análise sobre o tema. Assim, no momento, o Judiciário gaúcho diz não adotar e não reconhecer institucionalmente a constelação familiar.
Já a Defensoria Pública do Estado (DPE-RS) utiliza a constelação familiar desde 2018, a partir de convênio com a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Patricia Pithan Pagnussatt Fan, defensora pública dirigente do Núcleo de Defesa do Direito das Famílias (Nudefam), foi a responsável por implementar a ferramenta. Antes do início das atividades, porém, a defensora pública diz ter feito um curso de formação em constelação familiar, para entender como é a abordagem e como poderia ser usada na rotina da Defensoria Pública.
– O objetivo da constelação não é um acordo, mas trazer clareza e autocuidado à pessoa, para que ela se sinta capaz de resolver suas questões. É sempre no sentido de oferecer condições para que ela esteja segura para tomar boas decisões. A constelação familiar potencializa a cultura da paz na mediação – explica.
Segundo ela, a constelação familiar engloba um esforço para que conflitos familiares sejam resolvidos de forma extrajudicial. Na Defensoria Pública do Estado, o trabalho tem início quando reportado um conflito familiar, que pode ser uma discussão sobre a guarda de um filho ou divórcio, por exemplo. No órgão estadual, o grupo ou o casal é primeiro atendido em uma atividade chamada Oficinas das Famílias, na qual a defensora explica o processo legal, direitos e deveres dos envolvidos na situação.
O objetivo da constelação não é um acordo, mas trazer clareza e autocuidado à pessoa, para que ela se sinta capaz de resolver suas questões. É sempre no sentido de oferecer condições para que ela esteja segura para tomar boas decisões.
PATRICIA PITHAN PAGNUSSATT FAN
Defensora pública dirigente do Núcleo de Defesa do Direito das Famílias (Nudefam)
Ao notar que uma das partes não está aberta ao diálogo, a defensora oferece a constelação familiar como uma opção ao que demonstra resistência à conversa. Se aceitar, a pessoa pode ser constelada, ser participante do sistema ou apenas assistir a sessão. O uso da abordagem pode ser recusado, pois não é participação obrigatória, esclarece Patricia:
– Não tem sentido você obrigar alguém a fazer mediação ou obrigar a constelar. Então, é sempre um convite. Eu digo que a constelação é um presente, porque uma sessão paga custa R$ 400. Nós oferecemos esse trabalho de forma voluntária, para pessoas que não teriam o de forma alguma ao pagamento particular de uma constelação.
Na Defensoria, a constelação é feita uma vez por semana pela internet e uma vez por mês de forma presencial, sob condução de uma consteladora voluntária. A defensora pública não atua: só recebe relatórios de como foi cada sessão.
Segundo Patricia, a abordagem não é aplicada apenas em casos de violência doméstica. Questionada sobre a eficácia da constelação familiar nas atividades da Defensoria Pública do Estado, Patricia afirma que a técnica tem se mostrado útil na resolução de conflitos e a ideia é a de que o trabalho continue:
– É claríssimo (o benefício), chega a ser assustador. As pessoas que am pela constelação vão com outra postura para a sessão de mediação, com as emoções trabalhadas. A pessoa a a estar mais segura de si, mais consciente sobre o que ela pretende.
A constelação familiar é uma das 29 Práticas Integrativas e Complementares (Pics) oferecidas no Sistema Único de Saúde (SUS), que, segundo o Ministério da Saúde, atuam na “prevenção e promoção à saúde com o objetivo de evitar que as pessoas fiquem doentes” e que “podem ser usadas para aliviar sintomas e tratar pessoas que já estão com algum tipo de enfermidade”. As Pics foram aprovadas em 2006, por meio de uma portaria, na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PNPIC).
A constelação familiar foi incluída na listagem em 2018 e é assim definida pelo Ministério da Saúde: “Método psicoterapêutico de abordagem sistêmica, energética e fenomenológica, que busca reconhecer a origem dos problemas e/ou alterações trazidas pelo usuário, bem como o que está encoberto nas relações familiares para, por meio do conhecimento das forças que atuam no inconsciente familiar e das leis do relacionamento humano, encontrar a ordem, o pertencimento e o equilíbrio, criando condições para que a pessoa reoriente o seu movimento em direção à cura e ao crescimento”. Segundo o dado mais recente do SUS, de 2019, foram realizados 1.838 procedimentos de constelação familiar como Pics na atenção primária à saúde do país.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) publicou, no início de março, posicionamento contrário ao uso da constelação familiar pela categoria. A nota técnica afirma que pressupostos teóricos da abordagem vão contra resoluções, normativas e leis que tratam do exercício da profissão.
O CFP diz que a constelação familiar viola as diretrizes normativas sobre gênero e sexualidade consolidadas na psicologia: segundo a instituição, a terapia reproduz conceitos “patologizantes das identidades de gênero, das orientações sexuais das masculinidades e feminilidades que fogem ao padrão hegemônico imposto para as relações familiares e sociais”.
Vejo com muita preocupação o uso das constelações familiares no sistema de Justiça, porque são promovidas em espaços em que estão emergindo conflitos extremamente dolorosos.
CRISTINA SCHWARZ
Psicóloga e integrante do grupo de trabalho do Conselho Federal de Psicologia (CFP) que emitiu nota que questiona a constelação familiar
– A constelação familiar naturaliza e reforça estereótipos de gênero e de sexualidade, reforça a supremacia dos homens nas relações. Ela traz uma noção preconceituosa em relação à homossexualidade. Na teoria, também há agens que naturalizam a violência sexual sofrida pelas meninas dentro da família, de responsabilizar mulheres e isentar homens – diz Cristina Schwarz, psicóloga e integrante do grupo de trabalho autor da nota técnica do conselho.
Segundo Cristina, na elaboração do documento, os profissionais estudaram a teoria de Bert Hellinger, na qual identificaram diversas “questões que são extremamente problemáticas para o exercício profissional da psicologia”. Um dos aspectos ressaltados como danosos para pacientes é permitir que sessões sejam transmitidas online e/ou ocorram em grupo.
– Isso é incompatível com a premissa fundamental, regrada pelo nosso código de ética, que é o sigilo. Não existe relação de confiança sem a confidencialidade do que é tratado no exercício profissional da psicologia. Outro aspecto é o grau de sugestionabilidade que isso gera, podendo transmitir a ideia de uma prática salvadora, com curas rápidas e mágicas, que se resolve de uma forma dramatizada, quase catártica – diz Cristina.
Para a psicóloga, a aplicação da técnica no sistema judicial inverte a lógica de proteção das famílias, invisibiliza a violência doméstica e silencia as mulheres vítimas de violência, o que está na contramão daquilo assegurado pela Lei Maria da Penha:
– Vejo com muita preocupação o uso das constelações familiares no sistema de Justiça, porque são promovidas em espaços em que estão emergindo conflitos extremamente dolorosos. A presença de mulheres em situação de violência a esses procedimentos pode expô-las a situações de revitimização e de violência institucional.
A nota técnica também destaca que a sessão de constelação familiar pode motivar estados de sofrimento ou desorganização psíquica, e que o método não tem conhecimento técnico suficiente para o manejo dessas situações, o que desrespeita o que é previsto no código de ética profissional do psicólogo.
– A ciência é baseada em um material teórico, robusto, escrito a partir de experiências, de pesquisas, que sejam validadas por uma série de metodologias, como é o caso da Psicologia. Nada disso identificamos no processo da constelação familiar. Ela usa modelos universais, o que significa que só tem um caminho certo. A psicologia, como pensamento, profissão e posição ética, não ite isso – diz Eliana Sardi Bortolon, conselheira secretária do Conselho Regional de Psicologia do RS.
A abordagem de episódios de violência, como agressões domésticas e estupros, por exemplo, é também criticada por representantes dos psicólogos. Segundo o CFP, faz parte do fundamento teórico da constelação familiar o “uso da violência como mecanismo para restabelecimento de hierarquia violada – inclusive atribuindo a meninas e mulheres a responsabilidade pela violência sofrida”. Somado a isso, segundo a representante do CRP-RS, está a possibilidade de que a vítima seja exposta a um grupo no caso de uma sessão com mais pessoas:
– Quando se arma uma cena para que ela reviva o estupro, a mulher é violentada de novo – resume Eliana.
Há uma sugestão pública em andamento (SUG 1/2022) que propõe o banimento da prática das instituições públicas. Na votação popular, a proposta recebeu, até as 14h de quinta-feira, 25.6151 votos favoráveis e 12.661 contra. “Os cofres públicos não podem pagar por um serviço que carece de comprovação científica e que já foi denunciado ao CNJ, bem como na mídia, por revitimizar e culpabilizar mulheres vítimas de violência que buscam solução no Judiciário, tratando algozes no mesmo patamar que suas vítimas. A Constelação Familiar possui abordagem mística, na contramão do Estado laico e da liberdade religiosa”, diz o texto da sugestão.