É difícil estabelecer uma unidade num universo temporal, estético e formal tão amplo. Como toda cinematografia periférica aos centros econômicos mais desenvolvidos, o Rio Grande do Sul viveu dificuldades de produção, e mesmo assim temos um legado significativo. O cinematógrafo chegou a Porto Alegre menos de um ano após estrear em Paris, trazido por Francisco de Paola e seu sócio Dewison, em 5 de novembro de 1896. A primeira filmagem foi em 1904, feita pelo exibidor italiano que excursionou pelo Estado Giuseppe Filippi. Desde então, filmes sempre foram realizados, expressando nossos anseios e valores artísticos e culturais.

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Fatimarlei, sobre o projeto de indexar toda a produção local: "Não imaginávamos tantos títulos, e isso que estão sendo listados apenas os longas"

No programa de aulas, você fala em diversificação da produção a partir dos anos 1980. Nesse período, surgiram produtoras como a Otto Desenhos Animados e a Casa de Cinema de Porto Alegre e as primeiras entidades de representação dos cineastas. também foi a época dos primeiros prêmios mais significativos, como os obtidos por Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado. Foi um momento de amadurecimento do cinema gaúcho?
Quem quisesse fazer cinema no Brasil se mudava para o Rio de Janeiro, e isso acontecia com todos: do baiano Glauber Rocha ao cearense Renato Aragão, ando pelo paulista Nelson Pereira dos Santos. Os jovens porto-alegrenses dos anos 1980 não quiseram ir embora, por isso arregaçaram as mangas, se organizaram e geraram as condições para fazer seus filmes: fundaram empresas produtoras e entidades de classe e pressionaram o poder público para criar órgãos de governo para o cinema. Não há dúvida de que amadureceram! É uma geração que saiu da bitola doméstica do Super-8 e criou um fluxo de produção que projetou o cinema gaúcho urbano e contemporâneo, abrindo caminho para as gerações seguintes.

O trabalho de indexação da filmografia gaúcha, que você realiza com Glênio Póvoas junto ao Iecine, tem revelado descobertas interessantes? Trabalhos pouco valorizados ou perdidos?
Do convite de Zeca Brito para que apresentássemos uma proposta de pesquisa sobre o cinema gaúcho surgiu a ideia da indexação. Glênio trouxe a experiência de já ter pesquisado os primórdios de nossa cinematografia e tem feito a prospecção dos filmes dos quais são elaborados verbetes e fichas técnicas. É incrível, não imaginávamos tantos títulos, e isso que estão sendo listados apenas os longas! A tecnologia digital gerou uma explosão na produção, pela facilidade de filmagem e de exibição no YouTube. É o caso dos filmes de Alvorada, dos humorísticos de Evandro Berlesi e do coletivo de terror Alvorada Z. São obras que não estão no circuito comercial nem no radar da crítica. Esse curso que vamos apresentar juntos faz parte desse processo de pesquisa e “descoberta” do cinema gaúcho.

Os coletivos são uma maneira de fazer frente a desigualdades históricas e se beneficiam da facilidade tecnológica que não havia para filmar. É muito bom que, nessa nova realidade, outras formas de expressão sejam possíveis.

FATIMARLEI LUNARDELLI

Crítica e pesquisadora de cinema

A produção gaúcha – e a brasileira em geral – teve um crescimento quantitativo no século 21. As razões que explicam isso são muitas e incluem a popularização dos equipamentos graças às tecnologias digitais e também as políticas públicas de incentivo à realização. O que esse crescimento trouxe em termos qualitativos?
Um dos problemas da descontinuidade é que não podemos melhorar a partir dos erros, e o cinema sempre foi muito caro, uma atividade artístico-econômica de alto risco. A facilidade tecnológica ampliou as oportunidades, liberou a invenção e a criatividade, junto ao o à formação. Isso se reflete nas conquistas internacionais recentes, como a premiação de Tinta Bruta no Festival de Berlim de 2018 e a seleção de A Nuvem Rosa (longa de Iuli Gerbase) no Festival de Sundance (em janeiro de 2021), obras de jovens cineastas. Mas o desafio econômico permanece, pois fazer filmes continua sendo das artes mais caras, e a exibição, que sempre foi a etapa mais complicada de todo o processo, agora mudou drasticamente com o streaming.

A diversidade parece ter de fato aparecido nos últimos anos, com coletivos como o Macumba Lab, formado por realizadores negros, e o Mbyá-Guarani, por profissionais de origem indígena. Que tipo de avaliação já se pode fazer sobre o impacto dessa diversificação?
Os coletivos são uma maneira de fazer frente a desigualdades históricas e se beneficiam da facilidade tecnológica que não havia para filmar. É o caso do Coletivo Mbyá-Guarani, surgido a partir do projeto Vídeo nas Aldeias (1987), do antropólogo e documentarista Vincent Carelli (diretor, entre outros, de Martírio, de 2016), para fortalecer a identidade e a cultura dos povos indígenas. O coletivo gaúcho foi criado em 2007 e dele se projeta a professora e cineasta Patrícia Ferreira Pará Yxapy, que tem uma filmografia de curtas e longas exibidos em mostras e festivais de cinema no Brasil e no mundo, como o American Native Film Festival e o Festival de Berlim, e em 2020 foi homenageada no Cabíria Festival Mulheres & Audiovisual. Então, é muito bom que, nessa nova realidade, outras formas de expressão sejam possíveis.

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