O conceito de “modernidade líquida”, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, norteia a crítica de Clarissa Ferreira à estruturação do Rio Grande do Sul em torno da figura mítica do gaúcho. Logo nas primeiras páginas do recém-lançado livro Gauchismo Líquido, vemos, no entanto, que a ideia de liquidez fugaz se transforma em metáfora da nascente criativa. “Pensamento é água, e para se encharcar é preciso mergulhar”, diz, na epígrafe. Com isso, acaba por inverter o sentido delatório que está na origem teórica do conceito.
Com desenvoltura intelectual, a autora esgueira-se entre as margens para não se confinar em uma das ribeiras das identidades dominantes gauchescas. Para isso, recorre aos verbos criticar e gostar, nem sempre de forma excludente. Também exerce uma autocrítica honesta quando sua argumentação ancora-se na experiência própria. Por exemplo, quando adere às denúncias de racismo no Hino Rio-Grandense, ite que já o tocou diversas vezes antes de aguçar seu ponto de vista.
Suas 180 páginas de ensaios, guardadas perenemente em capa dura, são a fixação da presença potente da autora na cena musical nativista, urbana e digital, na última década. Desde que chegou de Bagé à Capital, ou a rodar o Estado tocando violino em festivais e a questionar a peonada no blog que dá nome ao livro. Assim, Clarissa pautou e ponderou debates impreteríveis, a exemplo do questionamento que fez ao Festival da Barranca (realizado há 50 anos em São Borja), por vedar a participação feminina.
Gauchismo Líquido é uma obra de transição, participa da emergência de identificações femininas que tomam para si as coisas gauchescas com propriedade e liberdade. Não é uma adesão aguada, que aceitaria um lugar de representatividade limitado ao consenso tácito. É uma incorporação ativa, um transbordamento. Afinal, essa mulher não se contenta com o espaço reservado numa competição de declamações, onde poderia emular um timbre forte para representar seu sexo como originado da costela de Adão. Tampouco, diante da hegemonia dos compositores machos, essa antiprenda furta-se de compor suas canções e entoá-las, comunicando com seu próprio corpo quem é e o que pensa. A partir dessa atitude, pode escolher se vestirá vestido, chiripá ou jeans. Tais opções já são secundárias diante da contundência do seu texto.
Tal como Berenice Azambuja, a quem presta tributo com um artigo inédito que avalia seu legado feminista. Clarissa destaca que a cantora e compositora ficou famosa nos anos 1980 com uma canção machista, É Disso que o Velho Gosta, o que ofuscou toda sua produção transgressora. E recorda que logo após lançou Tudo que o Velho Gosta, uma réplica ao seu maior sucesso. De acordo com a pesquisadora, no verso “Eu também gosto de tudo que o velho vosta”, Berenice Azambuja teria “declarado a homossexualidade feminina na música gaúcha”.
Em outro ensaio, narra seu encontro afetivo com o ícone maior do gauchismo, Paixão Côrtes. Ou seja, o gaúcho não é seu inimigo, embora suas críticas a ele provoquem defesas desmedidas. Isso porque Clarissa segue a senda de contestações à índole normativa do tradicionalismo, que se intensificaram na década de 1980 e seguem vivas. Entre pesquisas que procuraram desmistificar o imaginário gauchesco sem embate direto com seus fãs e manifestos radicais, intelectuais de diversas áreas alimentaram a ira dos “aiatolás da tradição”, denunciando seus “heróis ladrões”.
Clarissa dá sequência a essa atividade inglória. No entanto, mesmo em aguaceiros peleados, resguarda a reverência a determinados elementos residuais. Com criatividade e capacidade de perceber mudanças em curso, acolhe novas demandas expressivas e dá vida a convenções emergentes que resistem à cultura dominante, encharcando-se no manancial do pampa.
Alguém já soprou ao vento por aí que, se um dos maiores provocadores que o gauchismo já enfrentou estivesse vivo, é bem possível que hoje fosse um entusiasta de Clarissa Ferreira. Dizem que era do feitio de Luiz Sérgio Jacaré Metz o incentivo aos jovens alternativos. Provavelmente porque o escritor, que travou embates em ZH, entendia a tradição como elemento de transformação, do sólido ao líquido, e vice-versa. Certamente Clarissa herda da geração de Jacaré, Ondina Fachel, Guacira Lopes Louro, Mary Terezinha e tantas outras vozes opositoras um tradicionalismo que tomou umas lavadas. Mas a consolidação de seu livro não se prende a esse pretérito, pois chega para desaguar seu devir.