Pedro Gonzaga: Inúteis talentos
Pedro Gonzaga: Abecedário (à maneira de Szymborska)

Depois da casa acordar, meu avô se erguia para fazer a barba. Ele adorava um barbeador elétrico da Philips, enxergava tantas virtudes no apetrecho que era como se fosse uma espécie de símbolo da transição tecnológica, um divisor de águas entre dois Brasis, o rural e o urbano. ada minha adolescência, ele me presenteou com um igual, que pouco usei porque me irritava a pele, mas que guardei durante anos, crente de que um dia meu rosto ganharia aquele aspecto áspero das gentes da fronteira. Um dia o aparelho estragou, meu avô não estava mais aqui, o que o salvou da frustração de saber que o neto precisa de bálsamos importados para se afeitar.

Revigorado, ele voltava à poltrona, trazendo alguns números da revista Ícaro, uma publicação bilíngue que usava para aprender inglês. ava horas catando palavras no dicionário. Não sei se desconfiava dos tradutores, cacoete do promotor que nunca fora capaz de aposentar. Não sei se tomamos os traços de quem amamos, pois aí estaria uma explicação para muito coisa, mas as frases, por certo que sim.

Hoje, antes de pôr na página a primeira palavra, os olhos perdidos para além da janela reando tantos ontens, voltei quando meus lábios me disseram, são as coisas do governo.

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