Um dos assuntos abordados pelo guia é a possibilidade de que crianças com essas características se submetam em casos específicos à suspensão do processo de puberdade. A estratégia, realizada em centros de pesquisa habilitados, permite que o adolescente ganhe tempo para avaliar sua identidade sexual, sem as pressões das transformações da puberdade.
A prática vem sendo adotada em três centros de referência do País instalados em São Paulo, Campinas e Rio Grande do Sul.
– A puberdade pode ser extremamente sofrida para crianças com disforia – afirma o coordenador do Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Alexandre Saadeh, um dos consultores para a preparação do guia.
A supressão da puberdade é reversível. Caso, durante o processo, o adolescente decida que deseja permanecer com sexo biológico, determina-se a suspensão do uso dos hormônios.
No ambulatório da Medicina da USP atualmente cinco crianças realizam o bloqueio. Há ainda outras quatro que poderão iniciar o processo, quando a puberdade estiver mais próxima. A supressão da puberdade somente é indicada para casos em que o diagnóstico da disforia está feito ou prestes a ser concluído. Luciana observa que a estratégia é usada em casos específicos e não é essa a atribuição do pediatra.
– Fizemos um guia de atualização, onde vários tópicos são abordados, como o que é a transexualidade, como identificar a disforia e quais estratégias estão disponíveis.
A presidente da sociedade afirma que não raramente o pediatra é o primeiro profissional de saúde a ser procurado para conversar sobre sexualidade e, em alguns casos, sobre variação de gênero das crianças e adolescentes.
– A orientação correta é fundamental – assegura Saadeh.
Tanto ele quanto Luciana afirmam ter aumentado o número de pais que chegam ao consultório com dúvidas sobre a identidade sexual dos filhos, por causa da maior liberdade para se tratar do tema.
Para Saadeh, é essencial que pediatras não cometam erros do ado, como culpar os pais ou dizer que a criança tem de ser condizente com o sexo que nasceu.
– Muitos casos vão evoluir para homossexualidade, não necessariamente para a transexualidade.
"Processo recompensador"
Anderson Almeida muda o tom de voz ao falar do dia em que entrou em uma loja para fazer compras para sua filha Carol, há três anos. O gesto foi para ele - e para toda a família - uma mudança de vida e uma libertação. Anderson saiu da loja com vestidos, blusas, presilhas para cabelos, muitas em tons de rosa - a cor preferida, mas até então pouco usada por Carol.
– Foi um processo difícil, mas muito recompensador – conta.
Industrial, Almeida descreve seu comportamento do ado como antiquado e machista. Ele demorou a se convencer sobre os sinais que Carol começou a emitir aos dois anos. Na época batizado de Murilo, já colocava fraldas na cabeça, simulando ter cabelos longos.
– Minha mulher me alertou, dizendo que não tínhamos um menino em casa, mas uma menina.
Meses depois de muita resistência e de sucessivas tentativas frustradas de fazer Carol gostar de futebol, máquinas e mecânica, Almeida concordou em procurar o ambulatório da Faculdade de Medicina da USP.
– A pressão foi grande. Meus pais, religiosos, diziam que estávamos errados, foi um choque.
A cada dia que a, no entanto, Almeida se convence de que a mudança foi para melhor.
– Carol antes era desatenta, agressiva. Hoje é uma menina feliz, carinhosa com todos e muito interessada em aprender, disse.
A transformação de Murilo em Carol começou a ocorrer há três anos. Os avós da menina, assim como o pai, trocaram a resistência pela certeza de que o certo foi feito. A bisavó, de 93 anos, foi a pessoa que mais me impressionou. Quando levei minha filha para visitá-la, ela perguntou: mas esse não é o Murilo?", recorda.
– Quando expliquei que era o Murilo, que agora se chamava Carol, minha avó foi rápida: Isso é lindo. O importante é o amor.