Diagnosticado com pólio em 1966, sofre com os efeitos da chamada síndrome pós-pólio.
A acomodação por parte da sociedade choca o escritor e servidor aposentado do Tribunal Regional do Trabalho Ari Heck. Em 1966, quando tinha um ano e dois meses, ele foi diagnosticado com pólio em Boa Vista do Buricá. Esteve um mês em coma e viveu até os 15 anos numa cadeira de rodas. Fez uma cirurgia e só então foi aprender a caminhar, sempre apoiado em muletas. Cinco anos atrás, aos 48 anos, começou a sofrer os efeitos da chamada síndrome pós-pólio e teve de voltar à cadeira de rodas. Aposentou-se por invalidez. Coordenador da Associação Gaúcha dos Vitimados da Poliomielite e da Síndrome Pós-Poliomielite, Heck teve a vida inteira marcada por uma doença facilmente prevenível, mas que agora parece ser negligenciada por muitos brasileiros.
— Parece que ninguém se dá conta do que é ser vítima da pólio, da dificuldade que é conviver com um deficiente na família. É uma situação terrível, dramática. Somos 20 mil vitimados ainda vivos no Rio Grande do Sul e 200 mil no Brasil. A maioria ficou com sequelas gravíssimas, porque esse é um vírus com uma ação devastadora. Ataca os nervos e os músculos externos, da locomoção, ou então ataca um órgão vital. Não foi de graça que o Brasil erradicou a doença, e agora estamos colocando em risco todos esses anos de luta — desabafa.
Heck evoca com saudosismo as grandes campanhas de vacinação iniciadas antes da erradicação da pólio, ocorrida em 1989. Capitaneadas pelo personagem Zé Gotinha, elas mobilizavam o país. Ele avalia que essas campanhas foram abandonadas pelo governo, desmotivando a população, e defende que retornem, com urgência – opinião partilhada por vários profissionais de saúde.
A política nacional, no entanto, está calcada em um processo rotineiro, no qual as doses são aplicadas ao longo do primeiro e do segundo anos de vida, conforme um calendário previsto na carteira de vacinação. Com base nesse calendário, os pais devem ir a um posto de saúde nos períodos indicados para fazer a imunização. As campanhas e os dias nacionais de vacinação obedecem a uma lógica de reforço da proteção.
— A campanha de um dia específico visa à motivação, tem um efeito mais de educação, de mobilização, do que propriamente de solução. Só com campanhas não se soluciona o problema. O que precisa é dar prioridade ao tema — defende Luiz Augusto Facchini, da Abrasco.
As campanhas que Facchini advoga são aquelas que conscientizem a população e que tenham como efeito garantir que as cadernetas de vacinação seja mantidas em dia. Renato Kfouri também entende que as autoridades precisam apostar em informação, de modo a desfazer a falsa sensação de segurança que está vigente. Ele considera fundamental ainda assegurar que todo recém-nascido receba uma assistência em puericultura (com pediatra ou outro profissional que oriente e cobre a vacinação), que se revejam os horários de funcionamento dos postos (facilitando o o aos pais que trabalham), que se vençam os entraves burocráticos que fazem a vacina faltar nas unidades de saúde e que se leve a aplicação aonde a criança está — a escola, por exemplo.
— Tem de repensar todo o programa. Inclusive a comunicação, que antigamente era mais fácil, porque a doença estava diante dos nosso olhos. Agora essa comunicação tem de acontecer no nível digital, por intermédio de influenciadores, de forma diferente da que se fazia três décadas atrás — resume.
Essas preocupações seriam válidas mesmo em um quadro de alta cobertura vacinal — e é possível que as coberturas nacionais não tenham mudado tanto quanto as estatísticas sugerem. Na lista de municípios que teriam índices muito baixos de imunização, conforme o Ministério da Saúde — que indicou 312 cidades com vacinação contra a pólio abaixo de 50% da meta no ano ado –, a gaúcha Taquara apareceu com 47% de crianças vacinadas. Os órgãos de saúde do município, no entanto, garantem ter vacinado mais de 90%. Aos 33% atribuídos pelo governo federeal, Bento Gonçalves contrapôs um índice de 92%. E assim Brasil afora. Porto Amazonas, no Paraná, para dar mais um exemplo, figurou na lista do ministério com vacinação de apenas 39% das crianças, mas disse ter coberto 90% da população com até um ano de idade.
Se dados de muitas das 312 cidades elencadas pelo governo federal não batem, será que os dos outros mais de 5 mil municípios brasileiros também estão distorcidos? E não só no caso da pólio, mas das outras vacinas. Será que o alarme nacional recente foi baseado em um problema no registro?
O exame de uma situação típica pode ajudar a lançar luz sobre essas questões: o caso do município de Osório. Para a ministério, a cidade do Litoral Norte só imunizou 37,94% das crianças. Mas a prefeitura local apresenta dados inequívocos: teve 681 nascidos vivos no ano e imunizou 581 deles – ou seja, 94%.
— O mais importante é que temos certeza de que imunizamos. Essa é a tranquilidade que temos — observa o secretário municipal da Saúde, Emerson Magni.
Ao tentar explicar a discrepância, Magni cita uma sigla que muitas outras autoridades municipais na mesma situação estão trazendo à baila: Sipni, ou Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações. Trata-se do novo sistema adotado pelo ministério, no qual as prefeituras devem inserir seus dados. É a partir da implantação do Sipni, diz Magni, que os dados divulgados pelo governo federal deixam de bater com aqueles fornecidos pelo município.
— O problema não é de agora. O ministério lançou esse Sipni há uns dois ou três anos, e a partir daí estamos notando que as informações, não só de Osório, mas de outros municípios, não batem. E não só da pólio, mas de outras vacinas também.
Magni explica que a prefeitura tem um software próprio para os registros e que depois transfere os dados para a base local do Sipni. Nessa base local, diz ele, 94% das crianças constam como tendo sido vacinadas contra a pólio em 2017. Essa foi a informação exportada pelo sistema para Brasília. Mas, na sede do ministério, aparentemente, o dado que consta é completamente diferente.
O secretário informa que Osório e outros municípios gaúchos que perceberam as discrepâncias estão em contato há meses com a Secretaria Estadual da Saúde, para que o órgão faça a intermediação do problema com o nível federal. ZH contatou a pasta para saber quantos municípios reportaram o problema, qual a dimensão da distorção e que medidas foram tomadas, ao que o órgão do governo do Estado respondeu, por meio de nota: "Por enquanto, apenas três municípios entraram em contato com a secretaria se manifestando sobre problemas que ocorreram com o Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações: Osório, Ubiretama e Tupanciretã. A pasta está reavaliando os dados junto ao Ministério da Saúde para definir se houve realmente problemas relacionados ao sistema de informações nesses casos".
A percepção de que as estatísticas federais são frágeis está disseminada. Mesmo profissionais convictos de que há queda nas taxas de imunização entendem que os dados são distorcidos. É o caso de Renato Kfouri (para quem a migração de um sistema manual para outro digital causou um subregistro das imunizações realizadas) e também de Luiz Augusto Facchini, que diz:
— O sistema de informação do programa nacional de imunizações tem problemas, não é plenamente informatizado, tem procedimentos que ainda são manuais e grosseiros. Há muita perda de informação. Às vezes há uma unidade básica de saúde que conta com um computador que não está ligado à internet, ou então que não está autorizado a alimentar dados. Outras vezes pessoas anotam os dados, mas esquecem de preenchê-los no sistema. Por isso, é preciso ser crítico em relação à estatística.
Questionado sobre os problemas, o Ministério da Saúde respondeu, por e-mail, que cabe aos Estados e municípios manter o Sipni atualizado: "Estados e municípios, que têm sistemas próprios de informação online, devem fazer a migração dos dados para o Sipni, de acordo com as orientações do Datasus. Caso haja divergência nos dados após a migração, cabe aos gestores locais informar ao Ministério da Saúde para a correção de possíveis erros".
POLIOMELITE
Doença contagiosa provocada por vírus, é caracterizada por paralisia súbita, geralmente nas pernas.
TÉTANO
Infecção causada por uma toxina que entra no organismo por meio de ferimentos ou lesões na pele.
COQUELUCHE
Doença infecciosa que compromete o aparelho respiratório e se caracteriza por ataques de tosse seca.
SARAMPO
Muito contagiosa, é causada por um vírus e transmitida por tosse, espirro ou fala. Há surtos em diferentes partes do país.
RUBÉOLA
Atinge sobretudo crianças e provoca febre e manchas vermelhas na pele. É transmitida pelo contato com pessoas contaminadas.
FEBRE AMARELA
Doença infecciosa, causada por um vírus que é transmitido por vários tipos de mosquito. Casos da doença foram registrados recentemente no país.
HEPATITE B
Doença causada por um vírus e que provoca mal-estar, febre baixa, dor de cabeça, fadiga, dor abdominal, náuseas, vômitos e aversão a alguns alimentos.
CAXUMBA
Doença viral transmitida pela tosse, espirro ou fala de pessoas infectadas.
DIFTERIA
É transmitida por meio de tosse ou espirro de uma pessoa contaminada para outra.
VARÍOLA (ERRADICADA)
O vírus da doença existe somente guardado em laboratórios dos Estados Unidos e da Rússia.