Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), coordenador dos núcleos RS e SC do projeto Clínicas do Testemunho entre 2016 e 2017

A sentença "lembrar para não repetir", muito difundida nos movimentos sociais e na luta pelos direitos humanos, conjuga dois elementos de grande força, por certo, mas que, como estamos (vi)vendo, não estão sendo potentes o suficiente para equacionar as manifestações de violência com as quais deparamos cotidianamente. Elementos relativos à memória, embora colocados em continuidade, como se a lembrança fosse condição para deter a repetição, revelam, pelos seus efeitos, paradoxalmente, uma falha, uma fissura, indicando a descontinuidade entre os registros.

Podemos ponderar que, na descontinuidade entre lembrança e repetição, precisamos analisar e incluir outro elemento: a elaboração de uma experiência, na medida em que se inclui aí a tramitação de uma perda. Por essa via, seria possível considerar a possibilidade da construção de uma política da memória, na qual, enquanto sociedade, estamos – sendo otimistas – engatinhando.

No Brasil, muitos momentos que revelaram as entranhas de nossa estrutura social não tiveram sua importância reconhecida. Pelo contrário, foram ativamente ocultados para serem esquecidos. A ausência de lembrança e o esquecimento forçado de muitos fatos é proposital, com justificativas pouco sustentáveis, como a de que "é preciso olhar o futuro e esquecer o ado". Ora, reconhecer a importância das lembranças, das memórias, das narrativas, seja de uma pessoa ou de um país, é uma condição para a vida, individual ou social e, nesse aspecto, é absolutamente necessário darmos valor mesmo para as experiências mais difíceis, complexas e tristes de nossa história.

Mais recentemente, desde a criação da Comissão de Anistia, junto ao Ministério da Justiça, em 2001, algumas iniciativas de construção de uma política da memória foram concebidas com o intuito de fazer a sociedade responsabilizar-se por situações dessa natureza. Um dos enfoques é o período da ditadura civil-militar que perdurou de 1964 até 1985. Dentre os projetos criados, vale lembrar a Comissão da Verdade, em 2012, as Caravanas da Anistia, o Trilhas da Memória, bem como o Projeto Clínicas do Testemunho, que – infelizmente – encerrou suas atividades após a segunda edição, no fim de 2017. A primeira experiência ocorrera entre os anos 2013-2014.

Esse projeto, uma proposição da Comissão de Anistia, constituiu uma das estratégias do Estado brasileiro para reparar as vítimas diretas e indiretas – até a terceira geração – da violência perpetrada pelo próprio Estado durante o período dos chamados, não sem razão, anos de chumbo.

Os crimes de lesa-humanidade, como torturas, desaparecimentos, mortes e sequestros, perpetrados naquele período, precisaram cerca de 40 anos para serem reconhecidos pelo Estado e deixarem seu caráter assimbólico, sem fala, em que se mantinha. Mesmo assim, os responsáveis pelos atos de barbárie não foram condenados pela Justiça.

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Com o Clínicas do Testemunho, foram realizadas atividades clínicas, individuais e em grupo, formação de profissionais, produção de textos, dentre outras, em cinco núcleos no Brasil: Rio Grande do Sul e Santa Catarina (ambos coordenados, nessa edição, pelo Instituto Appoa, com apoio da Sigmund Freud Associação Psicanalítica), São Paulo (Margens Clínicas e Sedes Sapientiae) e no Rio de Janeiro (Iser). Essa foi uma resposta à pena aplicada ao Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos – caso Gomes Lund e outros (guerrilha do Araguaia) – com o intuito de criar condições de reparação psíquica e histórica aos afetados pelas graves violações dos direitos humanos no Brasil desse período de que precisamos lembrar.

O silenciamento imposto, a omissão e, pior ainda, a negação das experiências nefastas e danosas, não encontravam uma forma pública de serem expressos, para viabilizar o desdobramento de uma memória individual em memória coletiva. Mais do que uma reparação psíquica dirigida somente às vítimas, o Clínicas do Testemunho obteve outro ganho: reparar simbolicamente o próprio Estado, na medida em que todos fomos afetados pelos excessos por ele cometidos. E, com isso, contribuir na construção de uma memória, ainda que insuficiente.

Antiga e atual, a omissão do Estado brasileiro na construção de uma política da memória, ao silenciar sobre a continuidade de projetos desse tipo, ou de não transformá-los em uma política pública, tem por efeito transformar a história coletiva em algo desprezível. Lamentavelmente, essa estratégia tem servido mais para fomentar a repetição da barbárie, o que resulta na banalização da violência. Freud já nos alertava de que aquilo que é silenciado retorna inexoravelmente e nos desumaniza, fazendo com que o presente pouco se diferencie do ado. E problematize a construção de um futuro.

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