No começo de sua gestão, Trump chamou o Canadá de o “51º estado americano”. Os canadenses tratam a Copa como um ponto central na história do país e adotam um tom distinto em relação ao do presidente americano.
— Acredito que o mundo precise mais do Canadá. Estamos aqui para mostrar ao mundo quem somos. O 12 de junho de 2026 (quando o Canadá jogará em Toronto) é um dos dias mais importantes da história do nosso país — declarou, em abril, Peter Montopoli, presidente do Comitê Organizador Local do Canadá.
Há expectativa de que a situação entre os dois países se acalme. Creditam-se os ataques de Trump como golpes diretos ao ex-primeiro ministro Justin Trudeau. Desde março no cargo, Mark Carney é visto como um nome mais simpático ao presidente americano.
Trump também implicou com os mexicanos, um dos principais alvos de suas medidas anti-imigração. O Golfo do México foi rebatizado por Trump como Golfo da América. Também há uma realização atritada com a presidenta Claudia Sheinbaum.
México e Canadá estão entre os dois maiores afetados pelo tarifaço de Trump. As medidas econômicas podem afetar questões de infraestrutura da Copa do Mundo.
O Canadá é o maior fornecedor de aço e alumínio para os Estados Unidos, metais que tiveram suas tarifas elevadas em 50%. Porém, o forte vínculo comercial entre os países impede qualquer tipo de rompimento imediato.
O atrito político-econômico pode complicar coordenações de áreas como segurança, transporte e vistos para torcedores e jogadores. Recentemente, Trump criou uma força-tarefa para coordenar os preparativos para o evento nos EUA. Ele será o presidente da comissão.
— Mais de 50% do comércio internacional realizado pelo México é com os Estados Unidos, e a mesma coisa pelo Canadá. Então, o Canadá e o México são completamente dependentes dos Estados Unidos. Começa-se a ensaiar superações dessas relações de dependência, olhando para países da Europa, olhando para países da Ásia, mas não são questões que se fazem da tarde para a noite. O tensionamento está muito ligado à própria gestão do Trump — comenta Jung.
As decisões do governo americano extrapolam as fronteiras. Na semana ada, Trump restringiu a entrada de cidadãos de 19 países nos EUA. Das 12 nações com restrição total, o Irã é a única classificada para a Copa.
O Sudão também tem condições de disputar o torneio. Os países com restrição parcial com maiores possibilidades de jogar a Copa são Cuba e Venezuela.
A chamada “travel ban policy” (política de proibição de viagens, em tradução livre) não afeta atletas. A medida evita maiores problemas para a Fifa e, no futuro, para o Comitê Olímpico Internacional (COI), mas impedirá que torcedores dessas nações entrem nos Estados Unidos durante o evento.
O argumento do governo Trump para adotar a medida apoia-se em questões de segurança para impedir que o terrorismo entre no território americano.
Os Estados Unidos adotam um tom mais áspero nas suas relações internacionais, mas estão acostumados a sediar grandes eventos e receber pessoas que não são muito bem-vindas.
LEANDRO CONSENTINO
Doutor em Ciência Política e professor do Insper
— A Fifa consegue organizar jogos em países que têm problemas com outros. Os Estados Unidos adotam um tom mais áspero nas suas relações internacionais, mas também são um país que está acostumado a sediar grandes eventos e receber pessoas que não são muito bem-vindas — pondera Leandro Consentino, doutor em Ciência Política e professor do Insper, e continua:
— Nova Iorque é a sede das Nações Unidas e mesmo pessoas não gratas nos Estados Unidos, ditadores que não são exatamente amigos dos Estados Unidos, conseguem entrar e transitar ali muito bem.
A maleabilidade americana e da Fifa estreitaram relações entre Trump e o presidente da entidade, Gianni Infantino, chamado por ele de "Johnny". Os dois criaram uma relação de ajuda mútua para a realização da Copa do Mundo.
Os grandes eventos muitas vezes são utilizados como palco para manifestações políticas. Acho que há uma grande possibilidade de acontecerem manifestações políticas desses países
JOÃO JUNG
Professor de Relações Internacionais da PUCRS.
A maior rigidez para o ingresso de turistas nos Estados Unidos cria uma via de mão dupla. Tem a capacidade de fortalecer o patriotismo americano, reforçando a identidade nacional, e de ser alvo de manifestações de quem é contrário às medidas. A imagem americana pode ser atacada durante os jogos mesmo que posicionamentos políticos-religiosos causem alergia tanto à Fifa quanto ao COI.
— Os grandes eventos muitas vezes são utilizados como palco para manifestações políticas. A Copa do Mundo na Rússia teve questões relacionadas a isso. A Copa do Catar teve a manifestação da Inglaterra ao criticar os direitos humanos no Catar. Então, eu acho que há uma grande possibilidade de acontecerem manifestações políticas desses países — argumenta Jung.
Atividades globais como o esporte ressoam além da disputa esportiva. Países ditatoriais, especialmente do Oriente Médio, utilizam o esporte como uma prática conhecida como sport-washing. Trata-se de uma estratégia de utilizar eventos de grande magnitude e clubes com alcance mundial para mudar sua imagem no tabuleiro geopolítico.
É como o reposicionamento de uma marca, usando grandes competições como ferramenta de marketing. No caso dos Estados Unidos, o resultado pode ser o contrário.
— Tem um conceito importante nas relações internacionais chamado soft power, que é o poder da influência, o poder de alguma forma de você encantar os demais países com a sua cultura. O que os Estados Unidos estão fazendo é, vertiginosamente, diminuindo o seu soft power ao redor do mundo, e o esporte é mais uma das áreas manchada por conta dessas iniciativas de Donald Trump — avalia Consentino.
O cenário vivido pela Fifa não será único. A Copa de 2030 terá a sua maior parte disputada em Espanha, Portugal e Marrocos — Argentina, Paraguai e Uruguai sediam apenas as partidas iniciais. Jung prevê clima turbulento também entre os três países mediterrâneos.
— São países que peram por momentos políticos turbulentos, Portugal teve eleições agora, com a ascensão do Chega!, que é o partido de extrema-direita, que diz que isso não é uma coisa apenas nos Estados Unidos, mas há uma tendência de grandes eventos esportivos futuros de perar esses tipos de problemas.
Mas essas serão cenas para os próximos capítulos. Por ora, o protagonista segue sendo Donald Trump.