
“Bergamota não é um bicho que vive embaixo da terra?”, perguntou-me certa feita uma amiga baiana diante da tabela de preços de uma fruteira em Caxias do Sul. Eu ri da confusão dela de bergamota com marmota. Mas tive que lhe dar certa razão. Muito antes, quando cheguei da Bahia para morar na Serra, também senti estranheza com o nome da fruta que reina soberana no inverno local. Como assim, não era nem tangerina, nem mexerica, nem laranja-cravo?
Bergamota: que nome mais esdrúxulo! E escolho o adjetivo esdrúxulo por isso mesmo, para falar do que para mim soava esquisito demais. E a fruta cítrica ainda tinha direito a apelido carinhoso por aqui: berga! É fato: a bergamota – e seu nome, sua temporada, seus rituais de consumo, tudo dela, enfim – foi chave de meu processo de aculturação em solo gaúcho. Tanto que, de tão íntimo, hoje também já a chamo de berga.
Viva, viva, é tempo de bergamota! O que equivale a dizer que já respiramos ares invernais. Nestas latitudes subtropicais, o que são a uva, a ameixa e o pêssego para o verão, é a bergamota para o inverno. Mais até. Ela chega profilática, qual dádiva da natureza contra as agruras da estação do frio. Uma berga é um Sol concentrado em gomos, ricos na vitamina C tão necessária. Pois que baixem os termômetros, que se enevoem os dias, que soprem os mais gélidos ventos, desde que tenhamos à mão essa maravilha curativa.
Ah, berga, abençoada fruta solar! Tua simplicidade esconde teu mistério. Simples porque ível, sem a casca difícil da parente cítrica laranja, e já vindo separadinha em gomos prontos para a boca. Mas misteriosa por impor em quem a descasca uma marca perfumada tão única quanto intensa. Sim, ninguém sai ileso desse contato, que exige se revelar adiante e mais adiante, por horas, dias talvez. A alcunha comum de mexerica já entrega esse efeito irradiador como a força de uma fofoca quente.
Como as coisas sagradas carregam seu mistério, talvez o enigma do aroma da bergamota sustente em algum nível o típico ritual sulista de devorar muitas delas sob o solzinho tímido de inverno. Nunca soubera antes desse costume regional, até ar a praticá-lo como uma necessidade — mais que orgânica, metafísica. Saio desse lagartear ritualístico como que perfumado de astro-rei, imunizado o corpo, alma em paz com os deuses do inverno.
Em Caxias do Sul e arredores, a sacralidade da berga, que ora tento entender, já está assegurada por uma tradição religiosa. Ela é a fruta obrigatória à venda na trilha dos romeiros com destino ao Santuário de Nossa Senhora de Caravaggio, em maio. Uma anedota local até diz que, do espaço, as únicas coisas distinguíveis na Terra são a Muralha da China e a trilha de cascas de bergamota no caminho de Caravaggio. Viu como as bergas estão entranhadas no imaginário regional do sagrado?
Falei em aculturação, o nome esdrúxulo da bergamota já grudou em mim como o perfume dela. Quando na Bahia, fácil esqueço da velha laranja-cravo da infância e peço bergamota. Daí preciso explicar que não é nenhuma marmota...