Durante o sono REM (quando são produzidos os sonhos), a noradrenalina, um neurotransmissor que o cérebro utiliza para prestar atenção nas coisas, está praticamente ausente. As pessoas têm um monte de memórias sendo revisitadas e reativadas, e estão sem o neurotransmissor que permite prestar atenção nisso. De manhã cedo, têm uma imagem dos últimos 10 segundos, um filme curto, quase um gif.  A maior parte das pessoas abre olho, levanta e vai ao banheiro ou vai tomar café. Quando fazem isso, vão ativando o cérebro, que começa a se encher de noradrenalina. Mas ele vai dizer para prestar atenção em outras coisas: o espelho, a pia, o fogão. Então elas sabem que sonharam, mas não lembram o que foi. 

Você diz que os sonhos são oráculos probabilísticos. Como isso funciona?
Os sonhos em geral são a busca de um certo objetivo. Quase todos têm um desejo e uma dificuldade, e colocam as memórias a serviço disso. São uma tentativa de prever o futuro com base nas probabilidades do ado. Pense em uma capivara que estava andando na floresta com sede, encontrou um rio e foi beber água. No rio, tinha um jacaré escondido, que a atacou, mas errou. Ela fugiu, se escondeu e foi dormir com medo e com sede. Durante o sono REM, que ativa regiões atingidas na emoção, a atividade elétrica gerada dentro do cérebro dela vai se movimentar em direção às memórias mais fortes, como se ela estivesse vivendo aquilo de novo. Mas vamos supor que, no sonho, o jacaré pegou ela. O medo vai aumentar. No dia seguinte, aquele medo pode salvar a vida dela se, em vez de voltar ao mesmo rio, ela trocar de lugar. O que aconteceu no ado pode mudar o futuro.

Como a pandemia está influenciando nos sonhos?
Tem dois tipos de coisas acontecendo: pessoas que estão dormindo menos, sonhando menos ou tendo pesadelos, que são as que estão com medo do futuro e tristes pelo ado que perderam, e tem as que estão dormindo mais, sonhando mais e sonhando mais intensamente, que são as pessoas que estão conseguindo se isolar e mudar seus hábitos. Quem está conseguindo dormir mais e melhor está experimentando sonhos épicos, vívidos, intensos. Tem a ver com mudar o jeito de viver para um jeito mais ligado na rotina, como viviam os nossos ancestrais. Por outro lado, tem gente que está em pânico, no estresse, na ansiedade, e está tendo pesadelos com medo, falta de controle, imprevisibilidade. A imprevisibilidade da nossa situação atual é muito poderosa para gerar sonhos.

É possível evitar pesadelos?
É melhor enfrentá-los. Mas uma pessoa que mentaliza coisas positivas antes de dormir está direcionando seu sonho para coisas positivas. Outro caminho possível é a pessoa ficar lúcida durante o sonho, perceber que está sonhando. O ioga indiano, o tibetano e outras técnicas ocidentais podem ajudar. Uma delas é se perguntar continuamente, na vigília, se você está sonhando ou não. Isso vai acontecer durante o sonho. Se você se dá conta de que está sonhando, pode sentir medo e acordar, ou continuar, assumir o controle e transformá-lo em uma coisa legal. As pessoas podem se treinar para isso. Mas, quando há um trauma, não se resolve assim. É preciso de psicoterapia. 

Como lidar com os pesadelos das crianças?
Da mesma maneira. a por conscientizar a criança de que o sonho é uma construção, e de que ela pode ter uma posição mais ativa. Falar que não é nada não resolve, porque é uma coisa mais profunda, e é importante lidar com as causas. Se for recorrente, a criança pode precisar de um ajuda externa, de um profissional.

“Em todas as sociedades do ado, os sonhos desempenhavam um papel essencial, serviam como oráculo probabilístico. Com a evolução da ciência, as coisas vão se estruturando para que as justificativas sejam planos concretos e objetivos. Agora que a gente está num momento de pandemia, é muito importante se reconectar com essa máquina que integra coisas subliminares. Precisamos fazer uma síntese de ciência com xamanismo.”

Você diz que a perda de intimidade com os sonhos traz prejuízos à sociedade. Como?
Em todas as sociedades do ado, os sonhos desempenhavam um papel essencial, serviam como oráculo probabilístico. Com a evolução da ciência, isso deixa de ser razoável. As coisas vão se estruturando para que as justificativas sejam planos concretos e objetivos. Trocamos o oráculo probabilístico por um oráculo determinístico. O problema de abandonar os sonhos é que perdemos contato com uma máquina que integra coisas subliminares. Agora que a gente está num momento de pandemia, é muito importante a gente se reconectar com esse farol. A ciência também é um farol, mas pode gerar catástrofes se não for usada com sabedoria. A gente precisa voltar à sabedoria dos ancestrais, que não sabiam ciência, mas sabiam sobreviver nesse mundo. Precisamos fazer uma síntese da ciência com o xamanismo.

De que forma o momento atual pode contribuir para essa reaproximação?
Quando a gente está submetido a pressões semelhantes, os sonhos am a ser coletivos. Quando temos problemas comuns, começamos a ter sonhos parecidos. Agora, as pessoas estão trancadas em casa, diante dos mesmos medos, e perceberam que não adianta ter solução só para uma parte da população. Enquanto existir epidemia, ninguém está seguro. É preciso de uma solução global. O sonho abre a possibilidade de a gente se conectar com soluções coletivas. 

Em um momento de tantas incertezas, como os sonhos podem contribuir para a projeção de um futuro melhor?
Gosto muito de uma frase do Ailton Krenak (líder indígena, ambientalista e escritor), que diz que a gente tem que encontrar um outro jeito de estar no mundo. A gente vai precisar de muita imaginação, e os sonhos são uma grande matriz de imaginação. O planeta está em crise, e a gente vai precisar de soluções criativas. Nossos problemas precisam de muita ciência e muito capital acumulado, e gente tem as duas coisas, mas falta sabedoria. Se as pessoas não sonham, não entram em contato com nenhum tipo de oráculo, elas não veem futuro. Começam a se desesperar, acham que não tem saída. É claro que tem. A espécie já ou por coisas muito piores. A gente nunca teve tanto conhecimento, tanta técnica, tanta ciência. Se a gente não vê saída não é por falta de ciência, é por falta de sonho. É por falta de capacidade de imaginar o futuro.

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